Naide Gomes: "Estar grávida suavizou a decisão de pôr fim à carreira"
Alta, com poucos quilos ganhos com a gravidez e todos na barriga, interrompe a entrevista para cumprimentar colegas e treinadores, perguntar pelos filhos e pelos sobrinhos, fazer um carinho a uma criança, beijar os mais próximos. Uma imagem contrária à que admite ter em prova: a de antipática. Também não estava lá "para fazer amigos". Começa por recusar fotos na pista de treinos, percebe--se que não se sente à vontade, talvez para não incomodar quem trabalha, talvez porque a saída de cena é recente. Antes uma saudação especial ao treinador de sempre, Abreu Matos, que ali treina outros atletas do Sporting. Clube e treinador andaram de mãos juntas na carreira da atleta e até parece impossível que no primeiro treino Naide tenha pensado que não voltaria a treinar com o professor. Por ela, Abreu Matos cortou o bigode, quando alcançou os sete metros no salto em comprimento. O Sporting é o clube de coração de Naide Gomes, onde está desde os 17 anos. Nasceu em São Tomé e Príncipe, faz 36 anos no dia 20 de novembro e com o nome de Enezaide do Rosário da Vera Cruz de Gomes. Aos 11 anos veio ter com a mãe, que veio tratar-se a Portugal e aqui ficou. A menina "voou" aos 13 anos no salto em altura, quando foi descoberta numa escola do Feijó. Dedicou-se ao pentatlo, onde foi medalha de ouro e de prata, para aterrar no salto em comprimento, onde conquistou mais nove medalhas, três das quais ouro, em campeonatos mundiais, europeus e universíadas.
Acabou a carreira há quatro meses, o que é que mudou?
Mudou a minha rotina, o facto de não ter um objetivo, uma competição importante para me preparar.
Ainda é uma decisão difícil?
Não foi uma decisão fácil mas tinha de tomá-la, para já, porque estou grávida. Mas foi uma decisão coerente e a gravidez facilitou. Tudo na vida tem uma etapa e a da competição chegou ao fim. Começa agora uma nova, se calhar a mais difícil e a mais bonita da minha vida: ser mãe.
A gravidez foi uma coincidência?
Foi. Fui operada três vezes devido às lesões. Em meados de novembro, dezembro, iniciei os treinos mas tinha muitas dores. Comecei um tratamento novo, a ter melhoras, a saltar, a ganhar confiança, a calçar outra vez os sapatos, e surgiu uma lesão no joelho. Fiz uma ressonância e os médicos disseram que tinha de ser operada, pensei: "Não. Quarta vez? É impossível."
Quarta vez desde 2012?
Sim. E, para uma pessoa que está habituada à alta competição ao mais alto nível, estar tanto tempo sem competir, obviamente que o rendimento não vai ser igual, os treinos não vão ser iguais. Sempre fui uma atleta de topo e competir só por competir não faz sentido. Ajudou-me, também, ter descoberto que estava grávida. Foi mesmo a chave de ouro, porque suavizou. Não custou tomar essa decisão porque ia ter um filho.
Diz que quer ser a melhor mãe.
Quero. Obviamente.
O seu objetivo é sempre ser a melhor?
Sim, sempre. A melhor fisioterapeuta, a melhor mãe, a melhor esposa, a melhor em tudo.
O melhor não basta, é dar 100%?
Todos devíamos pensar assim em tudo o que fazemos. E quando é assim é mais fácil. Obviamente que, por exemplo, na escola, quis ser a melhor mas quando a cabeça não dá, não dá. Mas não desmotivava, não ficava triste, porque sei que há capacidades que não tenho.
Já começou os treinos para mãe, também é um trabalho intenso?
Tenho feito as coisas todinhas como deve de ser. Faço tudo o que a médica me pede. Mas, obviamente, quando o bebé nascer é que vai ser o desafio maior.
"As coisas todinhas" incluem a preparação para parto?
Sim, já comecei o curso. Está a ser interessante. Também tenho a vida um pouco facilitada porque a minha irmã foi mãe há dez meses. Inclusive assisti ao parto.
Primos com pouca diferença de idades, tal como as mães.
Eu e a minha irmã temos uma diferença de idades pequena e eu aprendi com a gravidez dela. E também tenho acompanhado o crescimento da minha sobrinha, que é minha afilhada. Faço tudo: dar banho, mudar fraldas, portanto, já tenho uma experiência.
Acabou o stress da atleta de alta competição. Sente-se aliviada ?
Era aquele stress bom e do qual sinto saudades: a adrenalina. "Ai vamos entrar em competição; será que vai correr bem?" Isso é muito bom, faz parte. Mas obviamente que a vida agora é muito mais tranquila. Não tenho de pensar se consigo ou não saltar mais longe, se estou pronta ou não, se as lesões vão deixar-me treinar, se tenho dores.
Acabaram as dores?
Não tenho dores, estou fantástica e isso também é bom. Porque cheguei a um ponto em que já não tinha energias psicológicas nem motivacionais. Queria muito mas faltava-me aquela alegria que sempre tive, faltava-me aquela paixão.
Treinos bidiários, quatro horas.
Sim. E gostava. Treinava duas horas de manhã e duas à tarde.
A correr de um lado para o outro.
Eu não, porque faço muitas coisas. Como saltadora, faço musculação, saltos, é muito giro, adorava treinar. Quanto mais treino me pusessem mais eu gostava. Era desafiante. O meu treinador é que, às vezes, tinha de me pôr travão.
Uma das diferenças na sua vida é que aparece menos nos jornais desportivos e mais na imprensa cor-de-rosa.
É verdade. Vão buscar fotos minhas ao Instagram.
Como é que lida com isso?
Só partilho algumas coisas, acho que devo isso às pessoas que gostam de mim, que gostam de me seguir e que me apoiam. E partilho um pouco do meu percurso como grávida, mas q.b. Nunca fui de expor muito a minha vida. Mas é verdade, tenho saído muito nas revistas cor-de-rosa. Também talvez devido à gravidez, chama a atenção e à cusquice. Mas é bom.
Há uns anos atrás pouco se sabia da sua vida privada, agora partilhou o pedido de noivado.
Sim, mas o meu namorado já tinha sido apresentado há muito tempo, namoramos há 14 anos. E o noivado, pronto, partilhei no Instagram. Fora disso, não mostro mais nada.
Voltou aos seus passatempos: dançar, música e cinema?
Dançar, não muito. Cinema também não, ia com o meu namorado e ele trabalha em Angola. Adoro praia, tenho ido, e gosto de passear.
Há a hipótese de ser treinadora de atletismo?
Fiz um curso de treinadora de 1.º grau, fui a melhor aluna. Falta é o estágio, mas neste momento quero pensar no meu filho e nos preparativos para o seu nascimento.
Encara a possibilidade de ir para Angola, uma vez que o seu companheiro trabalha lá?
Se ele continuar lá, sim. Não faz sentido eu estar aqui e ele lá. Temos de partilhar os dois a paternidade.
Tem propostas para Angola?
Não tenho nada, mas temos muito tempo para decidir, a vida dá muitas voltas. Se ele continuar lá é uma hipótese mas não temos ainda nada estruturado.
Se for treinadora deixará a fisioterapia?
Não, gostaria muito de acumular, vamos ver. Sou daquelas pessoas que pensa dia a dia, não sou de tomar decisões nem de programar muito antecipadamente. Pensávamos em ter um filho e aconteceu. A vida é mesmo assim.
No atletismo, o principal adversário é a própria pessoa?
É a própria pessoa. Sempre pensei assim. Quando competia, competia em primeiro lugar comigo. E nos treinos também: vencer os meus obstáculos, os meus medos. Nunca pensava nas adversárias.
Nunca?
Não. Sabia que se conseguisse superar-me - porque sabia aquilo que valia - poderia ganhar a qualquer uma e, por isso, não valia a pena estar a preocupar-me com as outras. Obviamente que, em competição, há aquela adrenalina de querer ultrapassar a adversária, de querer ganhar, mas no meu dia-a--dia não. Há atletas que gostam de ler a lista das adversárias, veem as marcas, etc. Eu nunca liguei a isso.
As marcas não contam?
Não e sou o exemplo disso. Nos Jogos Olímpicos [Pequim, 2008] era a melhor do mundo naquele ano e falhei. Nada é garantido. Depende muito do vento, da disponibilidade do atleta, da maneira como acordou, tudo influência. Por isso é que eu nunca penso nos outros e penso muito em mim. Tinha um objetivo e era para isso que treinava. Quando quis chegar aos sete metros, punha um monte de areia nos sete metros e dizia ao meu treinador: "Quando conseguir passar o meu pé à frente deste monte, conseguimos saltar os sete metros." Até que um dia passei o monte.
Era uma forma de motivar.
Punha sempre essas coisinhas no treino, por iniciativa minha. Chegava lá e dizia: "Professor, vou pôr aqui uma linha." E no salto em altura foi a mesma coisa. Quis saltar 1,80 m e meti uma linha no meu quarto, tinha uns 22 anos, para onde olhava sempre que entrava no quarto. Tinha sempre algo motivacional para conseguir alcançar.
Conta mais o físico, o trabalho ou a mentalidade de vencedora?
É tudo. Se tivesse essa mentalidade e não tivesse aptidões físicas e genéticas era complicadíssimo. E eu, graças a Deus, tive esse conjunto. Há outros aspetos que poderia ter melhorado mas acho que foi bom.
O atletismo é um desporto individual, qual é a parte positiva, comparativamente aos desportos coletivos?
O que é positivo é que, quando fazemos uma marca, fomos nós que a fizemos. Quando cheguei aos sete metros, fui eu e o meu treinador que chegámos àquela marca. E depois é o ambiente que se cria, mesmo no próprio treino, não é uma equipa mas torna-se uma equipa. Vamos a uma competição internacional, uns Jogos Olímpicos ou Europeus, obviamente que cada atleta tem o seu objetivo mas todos se reúnem para ver a competição uns dos outros. Fica a amizade, este espírito de camaradagem. As viagens, dei quase a volta ao mundo.
Esteve em três Jogos Olímpicos, em Sydney ainda como representante de São Tomé e Príncipe. É essa a medalha que lhe falta?
Faltou. Mas vou ganhar uma que supera tudo, que é o meu filho. Mas faltou, obviamente ...
É a mágoa que tem na carreira?
Não tenho mágoa, já ultrapassei. Obviamente que gostaria mas não consegui, não vou estar aqui: "Ai, se pudesse voltava para trás." Não! Passou. Quem dera a muita gente ganhar as medalhas que ganhei. Para mim e para o meu treinador, era a medalha que nos faltava, a mais importante da carreira mas nem todos os atletas conseguem ganhar os Jogos Olímpicos (JO).
Culpa só das lesões ou, também, se foi abaixo psicologicamente?
Foram as lesões, principalmente. Nesses Jogos Olímpicos [Pequim, 2008], por exemplo, estava lesionada, tinha duas fraturas de stress, não consegui treinar, fui anestesiada para o apuramento. Poderia ter corrido bem como poderia ter corrido mal e correu mal. Custou, chorámos, mas passou. No entanto, voltei a ganhar mais medalhas. O que interessa é continuarmos.
A Naide ganhou 11 medalhas em competições internacionais, sente que é injusto falar-se na que faltou dos JO?
Sim, claro, porque uma carreira não se resume aos Jogos Olímpicos. Mas estou tranquila. Claro que gostaria de ter tido outra sorte, porque se tivesse um pouco mais de sorte tinha ganho muitas mais medalhas, é mesmo assim. Mas no fundo tive sorte, sou feliz.
Venceu no pentatlo e salto em comprimento, provas em que o país não tinha tradição de vencedores. Evoluímos mais no atletismo que em outras modalidades?
Sim, bastante. Houve uma grande evolução. Mas também nos temos destacado em outras modalidades. Por exemplo, o remo, o judo, a esgrima, o pingue-pongue... ah, eles não gostam que se diga pingue--pongue; é badminton...
...É ténis de mesa.
Isso. Estamos a melhorar. Antigamente, era só futebol e o atletismo a nível de fundo, hoje não.
Melhorámos em número e qualidade dos atletas, mas o futebol continua a ser o desporto-rei.
Senti isso na pele, obviamente. Ganhava um título mundial e, na capa de um jornal desportivo, vinha a notícia num cantinho. E, em grande destaque: "O treino do não sei quantas correu mal" ou "O outro fez não sei quê", "está de férias".
Nunca se revoltou?
Houve sempre aquela revoltazinha, mas não é a isso que se resume uma prova. Obviamente que o destaque que poderiam dar era merecido mas não me preocupava minimamente, porque o importante era conseguir o meu objetivo, obter aquele título. Ainda agora quando a Telma Monteiro ganhou uma medalha [a judoca foi campeã da Europa pela 5.ª vez] os desportivos não deram um destaque como o Diário de Notícias ou o Público. É vergonhoso. Porque querem mostrar uma capa com as férias de um jogador? Por favor! Enquanto não se mudar esta mentalidade, não vamos a lado nenhum.
Nisso mudou alguma coisa nos 22 anos da sua carreira?
Nunca mudou.
Qual foi o seu principal adversário em competição?
Eu e as minhas lesões. Às vezes pergunto onde teria chegado se não tivesse as lesões? Mas pronto, são os "ses", não vale a pena. O pior adversário foram, sem dúvida, as lesões.
As lesões podem dever-se a treinar com tanta intensidade?
Também ou, se calhar, é genético. Treinei para provas combinadas, sete disciplinas, o que, obviamente, era muito duro. Treinava de manhã, à tarde, treinava muito, porque eram sete e eu queria ser a melhor. Os atletas de alto nível chegam a um ponto em que não há hipótese: têm de levar o corpo ao limite. E eu levei o meu corpo ao limite. Mas, pronto, infelizmente, sofri bastantes lesões que me atrapalharam bastante. Cheguei a treinar com imensas dores, aguentei tratamentos insuportáveis, tudo por um sonho, por um amor. E acho que repetia tudo de novo.
E qual foi a maior alegria?
Alegrias tive muitas, obviamente. Lembro-me da primeira medalha, ninguém estava à espera, nem eu. Foi em 2002, em Viena de Áustria [Europeus de Pista Coberta, prata no pentatlo], apareci do nada e lutei de igual para igual com uma campeã olímpica, não tive medo. Aí pensei: "Se consegui esta competição, consigo muito mais." E trabalhei fantasticamente para o conseguir. Tudo o que consegui foi mesmo fruto do meu trabalho.
É obra "voar" sete metros.
É preciso muito trabalho, senão não chegamos lá. Ter chegado aos sete metros, à marca emblemática, ser a primeira mulher portuguesa a saltar os sete metros foi o momento mais importante. Lembro--me perfeitamente, dia 22/07/2007, em Madrid [Meeting de Madrid, 2.ª classificada], num final de tarde fantástico. Eu disse: "Finalmente!"
E o que é que fez a seguir?
Dei uns pinotes.
Só isso?
E fiz uma aposta com o meu treinador [Abreu Matos]. Se conseguisse os sete metros, ele rapava o bigode. Saltei, vi que era um bom salto e, quando mediram, virei-me para a bancada: "Vais tirar o bigode" e pus-me ali aos saltos. No dia seguinte, ele apareceu sem o bigode, não o reconhecia. Desde então, nunca mais o deixou crescer.
Deixou São Tomé e Príncipe com 11 anos para viver em Fernão Ferro, Seixal. Dois anos depois destacava-se na escola no salto em altura.
Saltei 1,50 m, mais do que os rapazes. O professor Mota Capitão foi o meu olheiro. A ele agradeço muito.
Manteve o contacto com ele?
Sim, de vez em quando encontro-o. Ele foi o responsável por eu estar no atletismo. Depois de ver o meu salto, veio falar comigo e disse: "Tens imenso jeito. Já pensaste ir para o atletismo? Para o desporto escolar? Podes chegar longe, entrar na universidade." E eu: "A sério!? Com o atletismo posso estudar?" Entrei um pouco por interesse mas depois comecei a ganhar o gosto.
Conta que a sua mãe saía de casa para ir trabalhar às seis da manhã e entrava à meia-noite, a Naide e a sua irmã ficavam sós. O atletismo ajudou a não se desviar por outros caminhos?
Ajudou, mas a minha irmã não fazia desporto e não se desviou. Tem que ver com a educação, a que inicialmente me deu a minha avó e depois a minha mãe. A minha mãe veio para Portugal e, entre os 4 e os 10 anos, fui criada pela minha avó. Deu-nos uma educação fantástica, rígida mas fantástica, e a minha mãe também. Tínhamos um respeito enorme pelos mais velhos. Se a minha mãe dissesse para não fazer, não fazíamos. E ela teve muita sorte com as filhas. Duas miúdas, sós, e nunca houve problemas.
Boas alunas?
Sim. Não digo excelentes mas boas alunas, sim.
Teve convites de outros clubes, nomeadamente do estrangeiro?
No início da minha carreira, quando ainda representava São Tomé Príncipe, tive um convite para ir, com uma bolsa, para os Estados Unidos, estudar e treinar.
Não se arrepende de não ter ido?
Não, não fui porque acreditava nos treinadores portugueses, no meu treinador . Além de que tinha estado seis anos sem a minha mãe e não ia ficar outra vez longe dela. Não me arrependo, porque fui uma das melhores. Ganhava às americanas daquela altura, não é por aí.
E condições para evoluir?
As condições materiais são inferiores, mas a nível do país e a nível do treinador tive boas condições. Além de que o atletismo foi evoluindo e as condições melhorando. Hoje em dia, temos grandes condições, que só utilizei na parte final da minha carreira. Antes disso, treinávamos à chuva, nas matas, ao frio. Não havia uma pista destas [Centro de Alto Rendimento de Atletismo, Jamor] para nos refugiarmos. Por isso, dou muito mais valor às minhas vitórias.
E a nível monetário?
Comparando com outros países, não somos os melhores. Os nossos vizinhos, os espanhóis, recebem muito mais do que nós por uma medalha e têm uma espécie de reforma de carreira. Nós temos uma bolsa e nem todos a recebem porque é necessário estar x tempo na alta competição. Temos de ter outra profissão para depois de abandonarmos a carreira.
Tirou Fisioterapia. Quantos anos é que levou a tirar o curso?
Para aí uns oito ou dez anos.
Não há facilidades para atletas?
Em Portugal não há facilidades. Por exemplo, nos Estados Unidos o estudo é em função do treino, aqui, para conseguirmos estudar temos de nos desdobrar. Treinava de manhã, ia a correr para a universidade, estava completamente estoirada, e depois voltava para aqui [Jamor] para treinar. Não descansava e optei por meter o treino em primeiro lugar, os estudos ia fazendo. Se não pudesse ir a uma frequência por causa de uma competição, fazia mais tarde, mas nas aulas práticas não havia hipótese. O curso de fisioterapia é muito prático. E com estágios nos hospitais, impossível.
Como é que os doentes reagiam quando percebiam quem era?
Ficavam a olhar para mim e perguntavam baixinho para o lado: "É a Naide Gomes?" Ficavam maravilhados por serem tratados pela Naide Gomes. Conheciam-me, viam o meu lado humano, a minha maneira de ser, diziam sempre: "É uma miúda fantástica, é muito humilde." E davam-me os parabéns.
A humildade é uma virtude?
Sim, temos de a ter, educaram-me assim. A fama nunca me subiu à cabeça. O meu treinador também me educou. E também tive uma boa base familiar, não somos mais do que ninguém. A fama acaba.
E em competição?
Na competição sou completamente fria, sou diferente.
Cumprimenta as adversárias?
Cumprimento. Mas não falo com ninguém, nem faço cara de amigos quando entro numa pista. As pessoas diziam-me que eu parecia arrogante e antipática nas competições e que, cá fora, não era nada disso. Respondia: "Em competição não estou para ser amiga de ninguém." Era uma maneira de me concentrar, fechava-me no meu mundo: eu, o meu treinador e a competição. Fora da competição, num convívio com outros atletas, era simpatiquíssima.
Provocava os outros atletas no sentido de os desmotivar?
Fui provocada mas nunca fiz isso e, como já disse, nunca me preocupo com os outros atletas. Quero estar lá porque quero competir e ganhar. Lembro-me de uma competição em Madrid, estavam três russas na final, passa uma e, mesmo à minha frente, bate nas pernas e grita. Olho para ela e penso: "O que é que achas que vais conseguir com isso? Dás--me mais motivação para te ganhar." E ganhei a competição, é parvoíce fazer aquilo.
Inicialmente estava a especializar-se no salto em altura, que era a modalidade do pentatlo de que mais gostava.
Sim, mas não tinha físico para uma saltadora em altura. Precisava de ser mais esguia, mais magrinha. Eu tinha os ossos muito pesados, muscularmente era muito forte. Daí, também, optar por provas combinadas, porque tinha aptidão para muitas disciplinas de atletismo. Mas, por exemplo, o meio-fundo, os 800 m e os 200 m, não era o meu ponto forte. As lesões também me levaram à decisão pelo salto em comprimento. E ainda bem.
Quanto se está a saltar, há espaço para usufruir do momento?
Há espaço para isso, temos a noção de que vai ser um bom salto ou não. Senti as coisas que supostamente devia sentir e que o meu treinador me ensinou: aguentar o salto, suspender o mais rápido possível".
"Costumo dizer às miúdas: Façam a vossa história, eu já fiz a minha"
Veio para Portugal com 11 anos, o que é que lembra de São Tomé?
É o que costumo dizer à minha irmã: lembro-me do cheiro, das brincadeiras, tudo ao ar livre. Não tínhamos brinquedos, não tínhamos televisão - acho que só aos fins de semana é que íamos aos vizinhos ver a televisão - então convivíamos muito mais.
Tem regressado a São Tomé?
Poucas vezes, a última em 2004. De férias, nunca fui. Mas gostava, porque tenho lá a minha avó, a minha tia, as minhas primas, fora isso, já não conheço ninguém. É um país de que gosto imenso. As pessoas são super-humildes e mantêm a cultura.
Qual é a comida são-tomense de que mais gosta?
A minha mãe faz o calulu, que é um prato típico de São Tomé, a cachupa, os doces, que eu amo de paixão. Mas o que recordo com mais saudade são as brincadeiras, que eram inventadas por nós. Gostava muito que o meu filho passasse por isso, brincar na rua.
Veio de São Tomé para Fernão Ferro, muito betão.
Sim. Completamente diferente.
Como é que foi a adaptação?
Estudávamos no Feijó e vivíamos em Fernão Ferro, que era bem longe. Acordávamos às seis e tal da manhã e íamos com a minha mãe apanhar o autocarro para entrar na escola às oito. E chegávamos a casa tardíssimo. A mãe proibia--nos de brincar com os vizinhos, porque não os conhecíamos, dizia para não aceitarmos nada de ninguém e nós obedecíamos. Ela era mãe e pai e percebo o medo dela.
Vai ser uma mãe rígida?
Não serei como a minha mãe, embora eu a perceba. Tinha de educar duas miúdas, duas mulheres, o que não é nada fácil. Tão rígida não serei, mas vou ensinar ao meu filho muitas das coisas que ela me ensinou. Vejo crianças a fazer birras no supermercado porque a mãe não lhes comprou alguma coisa, isso não está no meu conceito, nem no meu nem no do pai dele. Ele também foi educado pela mãe e tem a mesma maneira de pensar. Obviamente que o meu filho vai ter coisas que não tive, mas há regras e ele vai saber que, para conseguir uma coisa, terá de se esforçar.
Sentiu-se bem acolhida quando chegou a Portugal?
Sim. Fomos muito bem aceites. A escola era no Feijó, um meio pequeno, era fantástica, os professores eram fantásticos, ajudaram-nos imenso. Tivemos sorte.
Não teve problemas de racismo?
Não, obviamente que, na escola, diziam coisas do tipo "vai para a tua terra", mas nunca liguei a isso
Li um artigo de 2004, quando ganhou o Campeonato Mundial de Pentatlo, que dizia "Ouro Negro". Lembra-se disso?
Não, não li ou não reparei.
É bom sinal.
Pois. Também nunca liguei a isso. Penso que se não der importância aquilo morre ali. Agora, que o racismo existe, existe. Conheci amigos que, se apresentassem uma namorada negra aos pais, eles abananavam um pouco.
O que é que sentiu ao ouvir o hino português no pódio?
Foi a primeira vez que ouvi um hino nacional. Nunca tinha ouvido o hino de São Tomé em competição. Foi uma grande emoção.
Vê alguma Naide Gomes no atletismo português?
Naide Gomes não vejo ninguém, acho que sou insubstituível, mas pode haver uma melhor do que eu, sem dúvida.
Um nome.
Não vejo, mas nunca se sabe, o desporto é assim. De repente, pode aparecer uma atleta fantástica. Agora, elas não podem preocupar-se comigo. Costumo dizer a essas miúdas: "Façam a vossa história, eu já fiz a minha."